Crítica de Ostrácia de Igor Lugris, publicada em Palavra comum

Ostrácia ou a literatura que nos escreve para ser escrita, por Ígor Lugris

0 comentários 🕔12:00, 12.Nov 2015

Este não é um livro que se poda ler tranqüila e inconscientemente. E esta não é uma crítica literária nem uma apresentação dessas nas que se glosa a vida, obra e milagres da autora. No caso de que gostedes duma vida insulsa, pacata e aborrecida, quer dizer, uma vida dentro dos mais ráncios cânones da ideologia burguesa e pequena burguesa, esta não é a vossa leitura. Procurade outra. No caso de que alguém deseje uma apresentação formal, neutral e objetiva, vai ter que aguardar por outros momentos.

Este é um livro inabarcável. Como a vida. Cada página abre um novo roteiro. Cada capítulo é um novo assunto. Cada voz é uma nova história. Cada personagem é um mundo. Como na vida. E todo o livro se constrói com esse paradoxo que supõe que esteja escrito de múltiplas perspectivas, mas contando com uma única leitura possível. São muitas as vozes que falam, mas é uma realmente a voz que escutamos.

Certo que no início, como já comentaram nalgumas críticas, há uma piscadela cortazariana, quando a autora nos facilita umas instruções para ler o livro. Porém, acho que com Cortázar o que mais partilha não é isso, mas o gosto por uma construção similar ao jazz. No Café des Manilleurs, o seu proprietário, Gaston, ouve como reage Inessa o dia que conhece a Lenine, precisamente lá, no seu café: “Nunca ouvi ninguém falar assim!”, di a Inessa referendo-se a Lenine. E, zangado, Gaston conclui que “as mulheres são todas infiéis e malvadas e não há deus que as entenda nem diabo que as suporte que falar, falar, sabe falar qualquer um…, não é?”.

Mas erra, erra profundamente o taberneiro que pretende escalar (e escalará) na escala social: falar, não sabe falar qualquer um, e, para este romance, eram necessárias ao mesmo tempo a multidão e a individualidade. A polifonia e a harmonia. Como no jazz. Enquanto na música clássica @s integrantes duma orquestra aspiram a obter dos seus instrumentos o som mais similar possível os uns dos outros, para dissolverem-se na homogeneidade, num grupo de jazz @s integrantes pretendem conscientemente um som dos seus instrumentos que os diferencie dos demais, e deste modo construir a unidade desde a heterogeneidade. Com orgulho e entrega. E poucas pessoas serão capazes de conseguir isso mesmo numa obra literária. Teresa Moure consegue. Falar, senhor Gaston, não sabem falar qualquer um.

Este livro é incompatível com a preguiça, com a molície, com a vadiagem. Vital, intelectual ou cultural. Mas também é incompatível com outras muitas cousas: entre elas, uma boa parte do sistema literário, a indústria, o mercado e o establishment. E, da minha perspectiva, é incompatível com a passividade, a inação e o silêncio. Não é um romance onde procurar lugares comuns, simpáticas e amáveis figuras históricas que nos reconfortem, ou um discurso brandinho e respeitável que nos permita ir passando as páginas para evadir-nos da realidade. Por isso insisto: no caso de gostardes duma vida insulsa, pacata e aborrecida esta não é a vossa leitura.

Não é por acaso que a capa do livro, a primeira imagem que nos construímos dele, está ocupada no seu lugar central por uma fouce e um vergalho. Sim, é um jogo visual de palavras com a fouce e martelo comunistas; mas também é sinestesia, cruzamento de ideias (e também de sensações, que para isso é uma imagem o que estamos a ver) que nos evoca uma nova representação na nossa cabeça: tal vez, memória de alguma cousa que soubemos e não recordávamos; tal vez, fantasia de alguma cousa que pretendíamos e não achávamos.

Mas, especialmente, a capa do livro é uma acertada metáfora. A ideia central, ou uma delas, deste extraordinário romance de Teresa Moure, é que Política e Erótica vão de mãos dadas. E quando dizemos Política, assim, com maiúsculas ou minúsculas, mas referida à arte de conquistar a hegemonia e ocupar o poder, não estamos a falar dessa pantomima burguesa ocidental com a que nos bombardeiam todos os dias, essa política enclaustrada entre as paredes de instituições de todo o tipo que cheiram a naftalina e bons modais. Não. Estamos é a referirmo-nos à praxe inevitavelmente revolucionária das maiorias (de maioria é de onde provém a palavra bolchevique) para a defesa e promoção dos seus legítimos interesses.

E quando falamos em Erótica, não estamos a falar dessa afetada e ridícula construção de telefilme dos domingos à tarde, mas desse termo que reúne desejo sexual e amor apaixonado, sensualidade e sexualidade, atração e entrega. Quer dizer, portanto, e como se recolhe na contracapa do livro, que é um livro que mostra que devemos evitar que a Política devenha politiquinha e o Desejo desejinho, convencidos (como se põe em boca de Lenine no capítulo 2) de que @s revolucionários não fizeram, não fizemos, tão longo percurso para agora chorar por um pouco de leite derramado. Importa é a revolução! E a Literatura não devir literaturinha.

Este livro constrói-se sobre a vida de Inessa Armand, a revolucionária bolchevique que passou à história (deveríamos precisar, à história patriarcal canônica ocidental…), como a amante de Lenine, e exclusivamente como a amante de Lenine, quando em verdade foi muito mais que isso. Uma leitura acadêmica moderna e progre, quer dizer: cool, hipster & vintage, pretensamente rebelde e alternativa e completamente dócil e tolerada, insistiria na imagem da Inessa mãe, Inessa estudiosa, esforçada, Inessa independente… Essa construção damulher brava da que o livro escapa, foge e renega. Porque Teresa Moure explora o lugar das margens, da exclusão, da dissidência: mas não só para descobrir a Inessa que procura, mas para que nos vejamos na obriga, nós, @s leitor@s, de procurar-nos também a nós.

Porque a Inessa que aqui vemos, a que constrói com os seus camaradas um partido comunista capaz de catapultar ao socialismo a 160 milhões de russ@s a partir dum pequeno grupo de apenas pouco mais duma dúzia de militantes; a Inessa que assiste em representação da fração bolchevique e do próprio Lenine a reuniões internacionais para defender as posturas revolucionárias frente a veleidades mais ou menos moderadas ou reformistas; a Inessa que resiste no desterro em Sibéria, em Mezen, com esses dificilmente concebíveis 37 graus abaixo de zero; a Inessa que se mostra despida e tranqüila ante os seus camaradas e ante Lenine para se banhar no rio e na vida; a Inessa que percorre meia Europa, ou Europa e meia na procura de fundos econômicos, e não só, para o Partido; essa Inessa é uma feminista, uma revolucionária, uma bolchevique que se sabe, que se aceita, que se reconhece a ela própria como submissa, como servente. Uma Inessa que, consciente e voluntariamente, se entrega à revolução, à causa do Partido, a transformação da realidade, mas também ao Amor, à Paixão, a Lenine. Explica-o bem a sua filha Várvara ante a Alexandra Kollontai (e isto se non è vero è ben trovato): “o espírito revolucionário exige servir… Servir uma causa, servir uma ideia, servir a quem puder levar a bom termo essa causa… Por muito que nos possa repugnar, isso faz parte do dever militante”.

Como é que poderia escrever sobre amor e política não havendo entrega?”, pergunta-se a aranha, a aranha narradora, umas páginas mais adiante, duvidando ainda se faz sentido, se fará sentido escrever mais uma história de amor. Perguntando-se se deve, se pode, se quer desvelar que a Inessa não queria possuir o outro, mas ser possuída. E isto, reflete, é tanto como não ser verdadeiramente feminista, verdadeiramente revolucionária, verdadeiramente bolchevique. É tanto como não ser autêntica. É tanto como ficar fora, nas margens, longe. Porque essa aranha é consciente de que a entrega política e a entrega amorosa precisam da mesma intensidade revolucionaria.

Ela, Inessa, não quer ser independente. Nas montanhas da Suíça, sozinha, novamente longe, reflete. Não quer ser independente. “Toda a força da política, toda essa energia que pode transformar a realidade procede de redes de solidariedade, de camaradagem, de ajuda mútua e de afeto. Mas ela, ai!, deve reconhecer: é submissa”. Não dócil, que essa é virtude das ovelhas, mas submissa. “Sem submissão não há milícias nem organizações”, pensa a Inessa. E sem organização não há revolução. Importa é a revolução. Sem entrega não há Amor. Mas quem se entrega é quem decide as condições. E a Inessa não vai retroceder: nunca-nunca-nunca.

Somos o que fazemos”, di a Alexandra Kollontai no seu segundo encontro com a Várvara Armand, a filha da Inessa. “Não”, responde-lhe esta, “somos aquilo em que acreditamos… e apenas fazemos o que podemos”. Descobre-se assim a Várvara: quer não é escrever sobre a sua mãe para descobri-la, para entendê-la; quer é escrever sobre a sua mãe para descobrir-se a sim própria, para entender-se.

Do mesmo modo lemos o romance: queremos não é descobrir Inessa, conhecê-la, entendê-la; queremos é entendermo-nos, conhecermo-nos, descobrirmo-nos. O livro é que nos põe frente a nós próprios: quanto de paixão, quando de vontade é que pomos nas nossas decisões, nas nossas ações, nas nossas declarações? Até onde é que estamos dispost@s à entrega?

O nosso desejo bate contra a realidade, como no caso da Inessa. Como ela, olhamos de fora, desde as margens, para a catástrofe. Inessa conscientemente assume a Ostrácia; a aranha, conscientemente assume a Ostrácia; e nós? Vamos aprender das experiências revolucionárias, ou vamos é deixar-nos levar polo caminho da molície e a preguiça?

Inessa sabe-se merecedora do castigo; aceita-o. Mas isso não significa que se conforme: “Quando realmente quiseres fazer algo, assim fazes. Nunca o deixes para o teu epitáfio”, diz-nos no final dos seus dias que teve como máxima. “Cada vez que se me apresentou a oportunidade de mudar algo, entreguei-me”. A entrega. Novamente. Essa é a ideia que percorre o livro, a força que o constrói, o conceito que defende. Sem entrega, não vai haver revolução, de nenhum tipo.

Socialismo, sabemos, é a expressão política do Amor. E Amor, também sabemos, é a expressão sentimental do Socialismo. A revolução, diz-nos a autora, é sem dúvida a forma mais elevada do desejo. Vão juntos revolução e desejo, socialismo e amor. Não como a cara e cruz duma moeda, mas como o verso e reverso do papel no que escrevemos as nossas vidas e lemos as dos demais. Porque em Ostrácia, na Sibéria a 37 graus abaixo de zero, ou nos calabouços da Audiência Nacional Czarista, ou nesse lugar longínquo e próximo no que decidimos recluir-nos, para olhar a catástrofe de fora, escrever é viver, porque às vezes a vida consiste apenas em escrever. Em deixar-se escrever. Em ser escrit@s.

Remato. A arte deve ser ficção para poder ser real, di a voz narradora. A literatura escreve-nos. Escrevemo-la e nos escreve, como essas máquinas autopoiéticas que se movem simplesmente polo fato de que se movem.

As ideias revolucionárias serão perseguidas um século depois, como o foram na época de Lenine e a Inessa, e os rebeldes continuarão a receber o golpe disso que mal chamam justiça. Restam, felizmente, espaços utópicos, relatos que se situam fora dos limites do tempo e das humanas proporções, onde as personagens da história podem ser tratadas como o que realmente foram: corpos vulneráveis, sujeitos à tortura das Ostrácias; pequenas massas de vísceras, rodeadas duma pele suavíssima e alimentadas por sonhos impossíveis”.

Absolutamente.

4 de Novembro de 2015

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