LENINE

CAPÍTULO 2 .
FRAGMENTO PARA APRESENTAR O PERSONAGEM

Eis apenas um homem. Está no seu gabinete, a dar voltas com uns papéis na mão. Tendo em conta os princípios que rodeiam o cenário político ondleninee se move, deveria ser descrito em termos económicos e históricos, como filho do Ilia Nikolaevich e da Maria Alexandrovna, da família dos Uliánov, que chega a ostentar um título nobiliário pela absoluta dedicação paterna a progredir socialmente subindo, passinho a passinho, na escala profusa de inspetores de escola. Considerando a questão de género, como gostaria a senhora Kollontai, talvez houvesse que lembrar que a desafogada situação económica dos progenitores permitiu a este homem dedicar-se aos seus projetos políticos, visto que a mãe, viúva, administrou a fazenda de maneira suficientemente engenhosa para sustentar e dar estudos aos filhos e, num arrebato de modernidade, também às filhas. E a determinação materna, a mesma que tem este homem que anda no seu gabinete a dar voltas, não se deteve, nem sequer quando os filhos, –e, ai!, também as filhas!–, começaram a mostrar atração por essas novas ideias; que se agrarismo, que se terrorismo, que se o maior é ajustiçado por tentar assassinar o czar, que se as meninas em vez de aproveitarem a oportunidade de ser universitárias dão em fazer parte de células revolucionárias. Que o objetivo duma mãe nesta vida é acompanhar os filhos, dar-lhes dinheiro, querê-los, dar-lhes dinheiro, perdoá-los, dar-lhes dinheiro, evitar que se desencaminhem e, se desencaminharem, arranjar dinheiro para subornar quem for preciso, que maternidade é ofício complicado. Ainda bem, portanto, que não é obrigatório descrever este homem segundo os princípios histórico-dialéticos e podemos tomar certas licenças, como a de descrever este que passeia pelo gabinete, hoje bem inquieto, como o animal que também é.

Então haverá que dizer que este homem tem uma boca sensual, de lábios carnosos e nariz arredondado, com as narinas um tanto dilatadas. Como ainda não ascendeu à posição de poder que a história lhe tem reservada, vai sem barba. O cabelo batendo em retirada e as olheiras falam eloquentemente dumas preocupações que provavelmente não o deixam dormir bem; a cor da pele denuncia dificuldades digestivas e escassa atividade sexual. Mas o principal no seu rosto é um olhar perturbador, um olhar que atravessa toda inteira a pessoa que tem diante, uma olhar que traz a força doutro mundo, ainda que não saibamos bem onde é que está esse mundo, talvez no futuro que os seus olhos contemplam esperançados. Os inimigos, lá fora, hão de exagerar a sua determinação, esse traço materno, como rotunda e inapelável, e a sua violência, a contida e a não contida. Os inimigos internos, que também os tem, falam de que os seus olhinhos de mongol não se cansam de orientar-se para essa linda francesinha. Os de fora e os de dentro, com ideologias opostas, coincidem no entanto em assegurar que a francesa, para além de tê-lo enfeitiçado, dorme numa cama grande e mole que nunca está fria e aí riem todos a uma voz, esquecendo as diferenças, que nunca houve acordo mais firme que o de criticar mulheres pela sua predisposição ao erotismo. Mas ele não sabe disto. Porque ele não é um deus omnisciente, mas apenas um homem que dá voltas no seu gabinete. Quem quer que o contemplasse através dum buraquinho praticado na parede, se não soubesse o personagem que ele é, destinado a produzir adesão ou repugnância máximas, veria alguém que é todo ele vontade. Isso, claro é, se não se atrever a mais, porque se for realmente ousada, a observadora afirmará que essa boca foi especificamente desenhada para a voluptuosidade. Lástima que ele não saiba.